Cem anos de devoção
Claudino Piletti
Há muito tempo – menos de cem anos, é claro – li o maravilhoso livro ‘Cem anos de solidão’, do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez. Ao lê-lo, o personagem principal, Coronel Aureliano Buendia, lembrava-me um que, por muito tempo, comandou nossa cidade. E, Macondo, descrita na obra como “uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”, lembrava-me a pré-história de nossa cidade.
Nesse ano, já bem crescida e transformada, por decreto, em “estância turística”, nossa cidade, ao invés de cem anos de solidão, comemora cem anos de devoção a São Sebastião. E, se toda comemoração deve ser oportunidade de questionamento e reflexão, a do centenário da festa de São Sebastião, não poderia ser diferente.
Assim, a questão que surge é a seguinte: Alguém, que flechou e flecha o santo, pode dizer-se seu devoto? Certamente não… Mas, alguns logo perguntarão: “Afinal, não foram os antigos romanos que o flecharam?”, sim, é verdade… porém, coerentes com o Evangelho, podemos dizer que toda vez que alguém flecha um de seus semelhantes é se flechasse o próprio santo. E, lembrando que o significado da palavra “devoção” é dedicação, afeto, respeito e admiração, pode-se perguntar: Alguém que não têm devoção em relação ao seu próximo, terá verdadeira devoção em relação a um santo?
Todos admiram, por exemplo, um médico pela sua devoção aos doentes. Mas, se ele deixar de ter devoção aos doentes e só ao santo, deixarão de admirá-lo. Podemos dizer o mesmo de um político que só tem devoção ao santo. Aliás, os políticos são os caras mais devotos que existem. Alguns são devotos do santo, quase todos, porém, o são do dinheiro e do poder. Na realidade são falsos devotos ou devotos falsos.
Tivemos, nesses cem anos de devoção, ao lado dos verdadeiros devotos, muitos falsos. Tivéssemos tido mais verdadeiros devotos e menos falsos, o nosso município, não estaria na lamentável situação que se encontra.
Se os falsos devotos não flecharam diretamente o santo, o fizeram indiretamente, pois, sua devoção ao dinheiro público e ao poder resultou em falta de merenda e ensino de qualidade, em falta de moradias, saneamento básico, emprego, transporte decente, assistência médica, remédios, etc. É claro que os falsos devotos, ao se apossarem do dinheiro público, não pensam nessas consequências. Ou, talvez, até acreditem que, por serem devotos do santo, têm o direito de fazê-lo.
Ledo engano… serão castigados por seus atos. Se, não nesse mundo, no outro, o que é pior. A menos que, o poderoso São Sebastião intervenha pedindo a Deus que, na sua infinita misericórdia, os perdoe. E, Deus, que na cruz perdoou ao bom ladrão crucificado ao seu lado, certamente os perdoará, pois, acredito que eles sejam bons ladrões.
E, cá entre nós: evoluímos! Hoje, nesse nosso século das luzes, ladrões já não são pendurados nas cruzes como o eram nos séculos das trevas. À propósito, o poeta Frei Antonio da Conceição, satirizando as honrarias concedidas aos “bons ladrões” do seu tempo, escreveu: “ Quando os séculos das trevas dominavam, / Nas cruzes os ladrões se dependuravam;/ Hoje domina o século das luzes:/ Pendentes dos ladrões andam as cruzes”.